sábado, 21 de fevereiro de 2009

Bienal - Zeca Baleiro e Zé Ramalho

Bienal - Zeca Baleiro - Zé Ramalho


Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio

Faço um quadro com moléculas de hidrogênio

Fios de pentelho de um velho armênio

Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta

Meu conceito parece, à primeira vista

Um barrococó figurativo neo-expressionista

Com pitadas de arte nouveau pós-surrealistacalcado da revalorização da natureza morta

Minha mãe certa vez disse-me um dia

Vendo minha obra exposta na galeria

"Meu filho, isso é mais estranho que o c da jia

E muito mais feio que um hipopótamo insone"

Pra entender um trabalho tão moderno

É preciso ler o segundo caderno

Calcular o produto bruto interno

Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone

Rodopiando na fúria do ciclone

Reinvento o céu e o inferno

Minha mãe não entendeu o subtexto

Da arte desmaterializada no presente contexto

Reciclando o lixo lá do cesto

Chego a um resultado estético bacana

Com a graça de Deus e Basquiat

Nova York, me espere que eu vou já

Picharei com dendê de vatapá

Uma psicodélica baiana

Misturarei anáguas de viúva

Com tampinhas de pepsi e fanta uva

Um penico com água da última chuva

Ampolas de injeção de penicilina

Desmaterializando a matéria

Com a arte pulsando na artéria

Boto fogo no gelo da Sibéria

Faço até cair neve em Teresina

Com o clarão do raio da silibrina

Desintegro o poder da bactéria

Com o clarão do raio da silibrina

Desintegro o poder da bactéria

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Clarice Lispector


"Deixo-me acontecer, fragmentária que sou e precários os momentos. Só me comprometo com a vida, que nasça com o tempo e com ele cresça. Só no tempo há espaço para mim".

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece, como eu mergulhei. Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento”.

"Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro…


Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas.


Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu…Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força.


Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão.


Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.


Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma”.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Ausência - Vinícius de Moraes



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces


Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto


No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida


E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.


Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.


Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados


Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada


Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.


Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.


Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.


Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.


Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.


Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.


E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.


Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.


Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.


E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.


Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Chico Buarque lê Álvaro de Campos

"Budapeste"Filme baseado no livro de Chico Buarque estréia em abril nos cinemas.