domingo, 30 de novembro de 2008


Assum Preto

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.

Luiz Gonzaga

O carteiro e o poeta


"Diz sim e de novo não "

Aqui na ilha há tanto mar
O mar e mais o mar
Ele transborda de tempo em tempo
Diz que sim, depois que não
Diz sim e de novo não
No azul, na espuma, em galope
Ele diz não e novamente sim
Não fica tranqüilo, não consegue parar
Meu nome é mar ele repete
Batendo numa pedra, mas sem convencê-la
Depois com as sete línguas verdes
De sete tigres verdes, de sete cães verdes
De sete mares verdes
Ele a acaricia, a beija e a umedece
E escorre em seu peito
Repetindo seu próprio nome

*Pablo Neruda

O coração , se pudesse pensar , pararia.

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.
Não sei onde me levará, porque não sei nada.
Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela
Poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros
Não sou, porém, nem impaciente nem comum
Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono Deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim.
Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero."

-Livro do Desassossego

* Fernando Pessoa

Greenpeace

"Quando a última árvore tiver caído

O último rio estiver secando

E o último peixe for pescado,

Vocês vão ver que dinheiro não se come."

Soneto

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio

*Chico Buarque

EU TE AMO

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantosdesvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

*Chico Buarque

Murmurio

Traze-me um pouco das sombras serenas
Que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
Que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança
Aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!

*Cecília Meireless

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje
Assim calmo, assim triste, assim magro
Nem estes olhos tão vazios,nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força
Tão paradas e frias e mortas
Eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança
Tão simples, tão certa, tão fácil
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

*Cecília Meireles

Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida
Parece-me que foi noutras esferas
Parece-me que foi numa outra vida.

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim

E as lágrimas que choro, branca e calma
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

*Florbela Espanca